Mudanças climáticas estão mais rápidas, generalizadas e se intensificando; já não resta dúvida de que influência humana é fator determinante, o que aumenta pressão sobre COP-26
Neste fim de semana, enquanto ocorriam as últimas competições da Olimpíada de Tóquio sob um calor que derrubou vários atletas da maratona – inclusive dois brasileiros –, moradores de ilhas da Grécia eram retirados de suas terras às pressas, fugindo de incêndios florestais que tomavam a região há mais de dez dias. Um vídeo desesperador mostra o momento em que centenas de moradores de Evia, dentro de um ferryboat, se veem cercados por fogo de todos os lados.
Não são eventos isolados. Diversos países do hemisfério norte estão sendo particularmente castigados neste verão. Começou com uma forte onda de calor na América do Norte, em especial no oeste do Canadá, onde a temperatura bateu 49ºC e uma centena de pessoas morreu. Mais duas centenas de mortes ocorreriam logo depois na Alemanha, na Bélgica e na Holanda em decorrência de enchentes que devastaram diversas cidades. Na sequência, a província chinesa de Henan foi atingida, em apenas três dias, por uma quantidade de chuva que normalmente cairia ao longo de quase um ano. Aqui no Brasil, no hemisfério sul, vivemos a maior crise hídrica do registro histórico.
Para não deixar dúvidas sobre o que está provocando tanto estrago, o relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), lançado nesta segunda-feira (09/08), bate o martelo: as mudanças climáticas já estão entre nós, ocorrendo de modo rápido, generalizado e estão se intensificando. Elas não têm precedentes em milhares de anos e, em alguns casos, já podem ser irreversíveis.
“A influência humana aqueceu o clima a uma taxa que não tem precedentes pelo menos nos últimos 2 mil anos”, alertam os cientistas no sumário. A temperatura da superfície global aumentou mais rapidamente desde 1970 do que em qualquer outro período de 50 anos, pelo menos nos últimos 2 mil anos.
A temperatura do planeta hoje é cerca de 1,09ºC maior que a observada no período de 1850 a 1900. Pela primeira vez o IPCC estima quanto desse aquecimento é culpa humana, e conclui que é a assustadora maior parte – 1,07ºC.
E isso é a temperatura média. Se olharmos só para os continentes – sem os oceanos, que regulam melhor a absorção de calor e são, portanto, mais frios – a temperatura já está 1,59ºC mais alta que no período pré-industrial. “Onde a população está, passamos de 1,5ºC. Não é mais a história de quando vamos chegar lá. Já chegamos”, frisa o físico Paulo Artaxo, da USP, um dos autores do relatório.
Ou seja, em terra, o aquecimento já superou o estabelecido pelo Acordo de Paris – que define esforços mundiais para combater o problema – como o limite de aumento de temperatura que deveria ser tolerado até o fim do século.
É inequívoco, aponta o sumário para tomadores de decisão (parte mais palatável do relatório, voltada para os governantes), que atividades humanas – em especial as que provocam emissões dos chamados gases de efeito estufa, como o CO2 (gás carbônico) e o metano – estão causando essas mudanças. A influência humana, reforça os cientistas, torna eventos extremos, como ondas de calor, chuvas fortes, ciclones tropicais e secas, mais frequentes e severos.
Essas são as principais mensagens do compilado de mais de 3 mil páginas que analisa milhares de pesquisas produzidas sobre o tema e aponta, com base no melhor conhecimento que existe, o que se sabe sobre as causas das mudanças climáticas, seus impactos e riscos futuros. Mais dois documentos serão lançados no ano que vem com sugestões de medidas de mitigação e adaptação.
Relatórios anteriores do IPCC (principalmente o 5º, publicado entre 2013 e 2014, e o 4º, de 2007) já traziam alertas parecidos, mas o novo calhamaço aumenta o senso de urgência, assim como o grau de atribuição das mudanças que estão sendo observadas global e regionalmente às influências humanas.
Aqui e agora
Os eventos extremos listados no começo deste texto não chegaram a passar pelo escrutínio do painel científico – que avaliou estudos publicados até janeiro deste ano –, mas são exemplos da nova condição que se estabeleceu no planeta e que tende a ficar cada vez mais comum. “A cada relatório temos dados melhores, modelagens mais robustas e a linguagem fica mais clara. Agora a interferência humana foi considerada inquestionável, não se discute mais”, resume a pesquisadora brasileira Thelma Krug, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e vice-presidente do IPCC.
O trabalho inova ao quantificar essa atribuição do papel humano nas mudanças já observadas e nas que estão por vir. Eventos de temperaturas extremas no continente que antes ocorriam uma vez a cada dez anos, em média, com o aquecimento atual já ocorrem provavelmente 2,8 vezes. Situações de ondas de calor que antes ocorriam uma vez a cada 50 anos, agora provavelmente ocorrem 4,8 vezes.
“Alguns extremos de calor recentes observados na última década teriam sido extremamente improváveis de ocorrer sem a influência humana no sistema climático. As ondas de calor marinhas praticamente dobraram de frequência desde a década de 1980, e a influência humana muito provavelmente contribuiu para a maioria delas desde pelo menos 2006”, aponta o sumário para tomadores de decisões.
“É muito bom que o documento seja publicado neste momento. Tira um pouco a responsabilidade da variabilidade natural climática nos eventos extremos e coloca que a chance é de de 0 a 5% de que eles ocorressem se não fossem as ações humanas. Ajuda a cair a ficha”, reflete Thelma.
O processo de aquecimento vem se acelerando: cada uma das últimas quatro décadas foi sucessivamente mais quente do que qualquer década anterior desde 1850. A data é usada como referência por marcar o início da Revolução Industrial, quando a humanidade começou a queimar intensamente combustíveis fósseis, aumentando a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera.
Estudos de paleoclima revelam que a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera é ainda mais impressionante. A quantidade de CO2 observada em 2019 era mais alta que a que ocorreu em qualquer momento dos últimos 2 milhões de anos. A concentração de outros gases também importantes para o aquecimento do planeta, como metano e óxido nitroso, era a maior dos últimos 800 mil anos.
O futuro cada vez mais próximo
No ritmo atual, a expectativa é que a temperatura média do planeta chegue a 1,5ºC, ou até exceda esse limite, nos próximos 20 anos. A previsão aproxima dos dias atuais o limite de aquecimento considerado o mais seguro que deveria ser adiado para o fim do século.
Há três anos, em um relatório especial, o IPCC havia comparado os riscos de um mundo 1,5ºC ou 2ºC mais quente. Os marcos são mencionados no Acordo de Paris, que definiu o compromisso de 195 nações do mundo a tentar limitar o aquecimento a menos de 2ºC até o fim do século, mas com esforços para ficar em até 1,5ºC.
No documento de 2018, o IPCC mostrou que esse 0,5 grau é suficiente para aumentar os estragos e que, no ritmo atual, o 1,5ºC seria atingido entre 2030 e 2052. Passados três anos, o painel indica que a janela de tempo está se fechando.
Os cientistas trabalham com cinco cenários diferentes (do mais otimista ao mais pessimista) para estimar como a temperatura do planeta pode reagir e quais outras mudanças no sistema climático podem ocorrer nas próximas décadas conforme a quantidade de emissões de gases de efeito estufa vamos ter.
No mais otimista, as emissões de gases de efeito estufa começam a ser reduzidas já e chegam ao zero líquido por volta de 2050, com uma combinação de estratégias para ter emissões negativas a partir de então – como muitos países vêm prometendo que vão fazer, mas ainda não mostraram como. Somente nesse melhor cenário é possível estabilizar o aquecimento em cerca de 1,5ºC até o fim do século.
Há um cenário intermediário, em que as emissões de CO2 se mantêm nos níveis atuais e começam a cair a partir de 2050. E dois cenários mais pessimistas, em que o nível de emissões pode dobrar em relação ao atual até 2100 ou, no pior caso, até 2050.
O relatório deixa muito claro que cada tonelada de gás a mais na atmosfera vai tornar a nossa vida mais difícil. O mais dramático, porém, é que muitas das mudanças que estão em curso vão se manter por um tempo, porque os gases que aquecem o planeta hoje não se dissipam tão facilmente.
É o caso, por exemplo, do aumento do nível do mar. De acordo com os cientistas, no longo prazo, ele vai continuar subindo por causa do aquecimento do oceano profundo e derretimento das calotas polares e deve permanecer elevado por milhares de anos. “Durante os próximos 2.000 anos, o nível médio global do mar aumentará cerca de 2 a 3 metros se o aquecimento for limitado a 1,5ºC, 2 a 6 metros se limitado a 2ºC e 19 a 22 metros com 5ºC de aquecimento”, ressalta o documento.
Boa parte do aquecimento da superfície também já está contratado. “A temperatura global da superfície vai continuar subindo pelo menos até metade do século sob todos os cenários considerados. O aquecimento global de 1,5ºC e de 2ºC será superado no século 21 a menos que reduções profundas das emissões de CO2 e de outros gases ocorram nas próximas décadas”, destaca o relatório.
No cenário intermediário, condizente com o rumo que a humanidade está tomando hoje, o aquecimento pode ser de até 3,5ºC. No pior cenário, a fornalha pode ser até 5,7ºC mais quente.
Importante ressaltar que isso é na média. O que significa que algumas regiões vão ser muito mais quentes que outras, como indica o mapa abaixo. Ele mostra como fica cada região do planeta com um aquecimento médio de 1,5ºC, na comparação com o período de 1850 a 1900, de 2ºC e de 4ºC.
Um Brasil ainda mais quente
“Observe que num mundo 4ºC mais quente, o Brasil fica com um aquecimento de 5,5ºC. É para onde estamos indo com as emissões atuais. Imagine Cuiabá, que normalmente chega a 41ºC, batendo 47ºC. O mesmo em Teresina, Manaus”, ressalta Artaxo.
O novo documento inova em trazer projeções mais regionalizadas sobre os impactos das mudanças climáticas e revela que a região do planeta denominada no relatório como Monção Sul-Americana, que engloba a porção sul da Amazônia – assim como as áreas de média latitude e as regiões do semi-árido – devem experimentar os maiores aumentos de temperatura nos dias mais quentes. Cerca de 1,5 a 2 vezes a taxa do aquecimento global.
O número de dias por ano em que a temperatura na região pode exceder 35ºC pode ser de mais de 150 dias até o final do século no pior cenário de emissões de gases de efeito estufa. Essa possibilidade cai para menos 60 dias ao ano no melhor cenário.
No Ártico está previsto ocorrer o oposto. A região deve experimentar os maiores aumentos de temperatura nos dias mais frios. Cerca de 3 vezes mais que a taxa de aquecimento global.
É muito provável que eventos de chuva intensa se intensifiquem e se tornem mais frequentes na maioria das regiões com aumento da temperatura. “Em escala global, projeta-se que eventos extremos diários de precipitação se intensifiquem em cerca de 7% para cada 1ºC de aquecimento global. A proporção de ciclones tropicais intensos (categorias 4-5) e as velocidades máximas dos ventos dos ciclones tropicais mais intensos devem aumentar em escala global com o aumento do aquecimento global”, escrevem os cientistas no sumário para tomadores de decisão.
De volta ao Brasil, num mundo 2ºC mais quente, é projetado um aumento das secas em áreas agrícolas e naturais na região do sul da Amazônia.
No Nordeste, os cientistas apontam uma alta confiança de um aumento dominante na duração da seca. No Sudeste, é projetado um aumento da intensidade da frequência e da intensidade de chuvas extremas e inundações a partir de um aquecimento global de 2ºC.
“Estamos falando há 20 anos que a situação está periclitando, que o caldo está engrossando. É isso, ele já engrossou”, complementa Artaxo.
Questionado se considerava o tom desse relatório mais dramático que os anteriores, Artaxo deu uma risada amarga. “Dramático é um adjetivo que não combina com ciência”, explicou. “Mas é o relatório mais enfático em dizer que é inequívoco nosso impacto no clima
e é enfático em dizer que precisamos reduzir emissões já. Agora. Não é na próxima década não.” Para ele, mesmo sem trazer explicitamente essa expressão, o relatório mostra que o “planeta entrou em estado de emergência”.
Não é pessimismo. É um choque de realidade. Ainda dá para fazer algo a respeito – se não para zerar o problema, ao menos para torná-lo menos danoso. A esperança é que o relatório aumente a pressão sobre a Conferência do Clima da ONU, a COP-26, que será realizada em novembro em Glasgow (Escócia).
O evento, atrasado em um ano por causa da pandemia, tem a expectativa de impulsionar o Acordo de Paris e acelerar as mudanças que possam zerar as emissões líquidas de gases de efeito estufa até 2050. O IPCC está dizendo que isso só vai ser alcançado se as emissões não só de CO2, mas também de metano (gás ligado principalmente à pecuária, o que aumenta a pressão sobre o Brasil) começarem a cair agora. Num ritmo de cerca de 7% ao ano.
“Em 2020, no início da pandemia, as emissões caíram 6,7% quando tudo foi fechado, teve lockdown, o transporte aéreo parou. Imagine que tem de ser assim pelos próximos 30 anos”, resume Artaxo.